O ridículo do culto ao "eu"
29/07/13 13:30O Milton Nascimento canta, em uma de suas músicas: “Certas canções que ouço / Cabem tão dentro de mim / Que perguntar carece / Como não fui eu que fiz?” Isso cabe como uma luva para a coluna do Pondé publicada hoje na Folha de São Paulo … quando eu li o texto eu me perguntei: “por que eu não escrevi isso?!”
Então, eu vou abrir a semana com ela. O texto é demais….
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A espiritualidade das pedras
O “eu” deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha
Luiz Felipe Pondé
Meu Deus, como ter um “eu” cansa! Os místicos têm razão. Não é necessário ser um “crente” para ver isso, basta ter algum senso de ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o “eu”. E a modernidade é toda uma sinfonia (ou melhor, uma “diafonia”, contrário da sinfonia) para este pequeno “eu” infantil.
Outro dia, contemplava pessoas num aeroporto embarcando para os EUA com malas vazias para poder comprar um monte de coisas lá.
Que vergonha. É o tal do “eu” que faz isso. Ele precisa comprar, adquirir, sentir-se tendo vantagem em tudo. O “eu” sente um “frisson” num outlet baratinho em Miami. O mundo faz mais sentido quando ele economiza US$10. E o pior é que, neste mundo em que vivemos, faz mesmo sentido. Qualquer outra forma de sentido parece custar muito mais do que US$ 10.
A filosofia inglesa tem uma expressão muito boa que é “wants”, para se referir a nossas necessidades a serem satisfeitas. Poderíamos traduzir de modo livre por “quereres”. O “eu” é um poço sem fundo de “wants”. Isso me deprime um tanto.
Como dizia acima, a modernidade é toda feita para servir ao pequeno autoritário, o “eu”: ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais consumo, mais direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção, mais reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro.
Outra demanda do “eu” que enche o saco é querer se conhecer. Você conhece coisa mais chata do que alguém que tira um final de semana para fazer um workshop de autoconhecimento e aí vai para jardins “fakes” na Raposo? E pior, quem tira seis meses para se conhecer depois dos 40 anos e acha legal? O autoconhecimento só é sério quando deságua em autoironia.
O império do “eu” se revela quando vivemos pela angústia de torná-lo “resolvido”. Nada é mais típico dessa angústia estéril do que alguém sempre atento às próprias dores.
Outra armadilha típica do mundinho do “eu” é a idolatria do desejo. A filosofia sempre problematizou o desejo como modo de escravidão, e isso nada tem a ver com a dita repressão cristã (que nem foi o cristianismo que inventou) do desejo. Problematizar o desejo tem mais a ver com um conhecimento sutil, fruto da experimentação que a realização do desejo sem idealizá-lo traz. A idealização do desejo é marca da condição adolescente ou reprimida.
O “eu” falante inunda o mundo com seu ruído. O “eu” mais discreto tece um silêncio que desperta o interesse em conhecê-lo. Mas hoje vivemos num mundo da falação de si, como numa espécie de contínuo striptease da alma. O corpo nu é mais interessante do que a alma que se oferece. Por isso toda poesia sincera é ruim (Oscar Wilde). O “eu” deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.
A alta literatura espiritual, oriental ou ocidental, há muito compreende o ridículo do culto ao “eu”. Uma leveza peculiar está presente em narrativas gregas (neoplatonismo), budistas (o “eu” como prisão) ou místicas (cristã, judaica ou islâmica).
Conceitos como “aniquilamento” (anéantissement, comum em textos franceses entre os séculos 14 e 17), “desprendimento” (abegescheidenheit, em alemão medieval) e “aphalé panta” (grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do “eu” por si mesmo.
A leveza nasce da sensação de que atender ao “eu” é uma prisão maior do que atender ao mundo, porque do “eu” nunca nos libertamos quando queremos servi-lo. Ele está em toda parte como um deus ressentido.
Por isso, um autor como Nikos Kazantzakis, em seu primoroso “Ascese”, diz que apenas quando não queremos nada, quando não desejamos nada é que somos livres. Muito próximo dele, o filósofo epicurista André Comte-Sponville, no seu maior livro, “Tratado do Desespero e da Beatitude”, defende o “des-espero” como superação de uma vida pautada por expectativas.
Entre as piores expectativas está a da vida eterna. Espero que ao final o descanso das pedras nos espere. Amém.
Impressionantemente coerente hoje mais vale o “ter” que é sempre visto pela grande maioria do que o “ser” que muitos não veem pois estão mais preocupados em “ter”, sem saber que o “TER” sem o “SER” não tem nenhuma validade, nenhuma vaidade e é desprovido de sentimentos até mesmo por si mesmo!!.
Na bíblia há um versículo que diz: Ama o teu próximo como a ti mesmo, este sem dúvida é o mandamento mais difícil de realizarmos na sua totalidade.
A renuncia do EU
Percebo que temos momentos na nossa vida que o eu está muito birrento e mimado e só quer, quer ,quer…
Depois, se tivermos persistência e firmeza conseguimos sossegá-lo e aí fica gostoso viver aqui dentro.
É como educar uma criança, nosso eu precisa de limites.
TUA ESPIRITUALIDADE , SE É QUE TENS ALGUMA ESTÁ IMPLODIDA…
Sensacional!!!!
Tanta coisa a comentar sobre este artigo… A cultura do “eu” decorre da imensa carência de afeto dessas gerações pós década de 60. As mães, com muito mais tempo disponível, resolveram que tinham que ir à luta, disputar com os homens o “divertimento” de trabalhar fora. Os filhos ficaram sozinhos (já estavamos nas cidades, com menos pessoas em volta da casa) sem entender porque não havia ninguem a cuidar deles. Hoje, todo mundo, as mulheres principalmente, procuram inconscientemente alguem ou algo que possa suprir essa imensa carência que joga sua auto-estima pra sola do pé. Quando não queremos nada, quando não desejamos nada, é porque já temos tudo, E ter tudo é ter a sensação plena e segura de que se foi e é amado. Só aí podemos ser livres e felizes por sermos capazes de amar…
Alguns pensadores europeus falam muito bem sobre isso. O “Não ser” que tem fundamento no eu. Para “ser” precisamos não ser. Quando temos a pretensão do eu ou do ser… isso ferra tudo!!!!
Eu li esse texto ontem na madrugada, antes de dormir e pensei: espero que eu durma bem agora.